Que farsa é essa?
Por que é tão difícil convencer ativistas das redes sociais de que o fascismo é ruim? Por que certas pessoas duvidam da ciência? Por que se agrupam na internet e se iludem com uma realidade virtual, descompromissada com a verdade? Por que acreditam nas mais estapafúrdias teorias da conspiração?
Tudo tem começo.
Francis Fukuyama, hoje esquecido, em 1992 com seu livro “O fim da história”, provocou euforia ao escrever que com o fim do fascismo e do socialismo – a União Soviética acabara – não havia mais “história” como estávamos acostumados. O repúdio de filósofos e historiadores não impediu que ele fizesse discípulos, especialmente em países subdesenvolvidos, em que a polarização ideológica é mais acentuada e às vezes a esquerda chega ao poder.
No Brasil a volúpia anti-intelectual, destilando um negacionismo revisionista, começou a expandir-se popularmente em 2009, com o “Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, de Leandro Narloch, ex-jornalista da Veja. Este livro “caiu bem” no, digamos, sentimento de uma cultura popular que se pretende inteligente e “esperta”. Deturpando fatos, citando fora de contexto e omitindo autores importantes, afirmava, entre outras bobagens, que o colonialismo foi bom para os brasileiros, especialmente para os índios. Para “amenizar” o escravismo disse que os quilombos eram escravocratas. E outras besteiras. Depois Narloch produziu um documentário para o History Channel: alguns historiadores que ele entrevistou exigiram que suas entrevistas fossem retiradas, pois sentiram-se enganados quanto aos fins do programa. Entre eles, Laurentino Gomes, Lilia Schwarcz e Lira Neto.
Rapidamente Narloch recolheu-se. Mas deixou sequelas. Logo em seguida surgiu outro livro, “Porque virei à direita”, dos colunistas da Folha, João Pereira Coutinho e Luiz Felipe Pondé, e Denis Rosenfield, do Estadão, a defender o conservadorismo como reação culta à ignorância da esquerda. Com toda a arrogância a que julgavam ter direito.
Desde então uma penca de “pensadores de direita” dominou o cenário. Quase todos com missão indisfarçável: destruir e negar o socialismo e combater as lutas progressistas. Mas estes ainda exibiam uma aura de intelectualidade, que escondia as intenções maliciosas. Foi nesse ambiente que se cristalizou o clima “cultural” para o impeachment de Dilma e a prisão de Lula – não se precipitem: os petistas não eram santos e alguns dos seus intelectuais faziam o mesmo jogo da direita, ao contrário.
Com a vitória de Bolsonaro as redes sociais substituíram as bibliotecas e os panfletários tomaram o lugar dos escritores. E tome cacete no lombo da cultura. Em suma, a degringolada intelectual nunca é originada pelos seus agentes visíveis. Começa com a elite pensante fornecendo argumentos para o escalão inferior que, estimulado, não tarda a criar um baixo clero que dissemina seus preconceitos.
Os intelectuais não são inocentes. Na Itália o grande incentivador de Mussolini foi Giovanni Gentile, pedagogo que se intitulava “filósofo do fascismo”. O famoso “Manifesto dos intelectuais fascistas”, redigido por Gentile, propunha a violência como método político e estimulava as milícias. Entre os que o assinaram estavam Giuseppe Ungaretti e Curzio Malaparte. Luigi Pirandello apoiou o “Manifesto” com uma calorosa carta. Não tardou outros aderiram, como Gabrieli d’Annunzio e Ezra Pound.
Na ascensão de Hitler, na Alemanha, os intelectuais conservadores desempenharam papel ativo. Comecemos com o mais famoso, o filósofo Martin Heidegger. Quando Hitler começou a aparecer, em dezembro de 1931 ele escreveu ao seu irmão: “Caro Fritz, parece que a Alemanha despertou, compreendeu seu destino. Gostaria que lesses o livro de Hitler (…) Já ninguém mais pode negar que este homem possui, e sempre possuiu, um seguro instinto político, quando todos nós ainda estávamos obnubilados. O movimento nacional-socialista crescerá no futuro, com novas forças adicionais. Já não se trata da mesquinha política de partido – trata-se antes a salvação ou do ocaso da Europa e da cultura ocidental”.
Heidegger aceitou o cargo de reitor da Universidade de Freiburg em maio de 1933, quando voltou a escrever a Fritz: “Entrei ontem no partido, não só por convicção pessoal (…) é preciso pensar não tanto em si mesmo, quanto no destino do povo alemão”. Aconselhou o irmão a também aderir ao partido, afirmando que “é preciso estar do lado dos nazistas e de Hitler”.
Intelectuais não gostam de aceitar que Hannah Arendt foi amante de Heidegger, de quem era aluna. E o filósofo, até 1941, ainda manifestava esperanças de que os nazistas vencessem os russos, contando ao seu irmão que “as tropas alemãs estão apenas a trinta quilômetros de Moscou”.
Na França talvez foi pior. Grandes nomes das artes e da literatura conviveram com os nazistas que ocupavam Paris. Entre eles, figuras icônicas, como Maurice Chevalier e Édith Piaf, que fizeram apresentações pagas pelos nazistas. Quase sempre se “esquece” que Coco Chanel, a famosa modista, era amante de um oficial nazista, com quem vivia no mais luxuoso hotel da capital. As mais pesadas críticas caem sobre Louis-Ferdinand Céline, escritor que nunca escondeu seu antissemitismo – mas ele, provavelmente, foi mais “honesto”, pois nada ganhou nem pediu aos nazistas e era um médico dedicado aos pobres. Diferente, por exemplo, de André Gide, que não teve pudor ao dizer: “Prefiro não escrever nada hoje, que possa me deixar arrependido amanhã”. Pablo Picasso, que se julgava “neutro”, recusou-se a assinar um abaixo assinado pela libertação de Max Jacob, que morreu em um campo de concentração.
Poucos se recusaram colaborar. Porém, depois da guerra, execraram as prostitutas, rapando-lhes os cabelos. Já Coco Chanel é admirada até hoje… E Picasso lembrado por Guernica e o magistral desenho da pomba da paz.
Mas outros tantos seguiram Albert Camus, George Politzer, Jean Gabin, Jean Renoir e criaram uma imprensa clandestina ou entraram para a resistência.
Mas, o que isso tem a ver com o Brasil de hoje?
Se não aprendermos a resposta estaremos condenador a repetir a história como farsa.